Matéria publicada pela Tribuna de Minas, em 16 de junho de 2017.
por Mauro Morais
“Acho que é hora de dizer adeus.” Fiona diz a frase e beija Dom. Acho que é hora de dizer adeus. Um espectador grita “Viva o Palace!”. Todos aplaudem. No filme “Perdidos em Paris”, a personagem Fiona anuncia o fim, beija Dom, mas logo decide ficar mais um pouco, e só então rolam os créditos. O Cine Palace, não. Fim é fim. Não houve prorrogação como na trama da última sessão, exibida às 20h15 da última quarta, 14.
Com ingressos esgotados cerca de uma hora antes, a última sessão serviu como ode ao cinema. Francesa, a comédia resgata o humor elegante de Jaques Tati e a crítica sutil de Charles Chaplin, diz de uma arte que se faz com a consciência da potência da imagem em movimento, com a confiança nos silêncios e com a possibilidade do que é surreal. Cinema em sua inteireza. Cinema como souvenir.
O insólito na última sessão do Cine Palace não se fazia especialmente pelo cheiro de mofo da sala 1, com seus 225 lugares, mas pelo tom constrangido das presenças. Uma, duas, três, várias selfies, com ou sem o ingresso nas mãos, demarcavam a excepcionalidade do gesto. Pela primeira vez desde que foi contratada como bilheteira, em 2013, passando a gerente no ano seguinte, Ana viu uma sessão ter mais bilhetes vendidos do que a própria lotação da sala. Muitos, segundo ela, compraram e sequer foram. Compraram para ter o ingresso da última sessão. “Muitos curiosos nos últimos tempos.”
A mulher impopular
Eufórica, a gerente lamenta pela extinção dos projetos populares e pelo pequeno público frequente. E reconhece a inviabilidade de um negócio que não ultrapassava 25% de seu potencial. Enquanto Ana fala, cerca de 50 manifestantes unem as mãos para, simbolicamente, abraçar o prédio. Sobra construção e falta gente. O abraço não se completa. Ana mostra os números. Tristes números que eram diários: Na Sala 1, com capacidade para 225 espectadores, na sessão das 14h, estavam presentes 63 pessoas, 28% da lotação. Ao filme das 16h assistiram 107, menos de 50% da possibilidade. Às 18h20, 208 espectadores encheram a sala, elevando o percentual em 92,4% do total permitido.
Na Sala 2, porém, onde era exibido “Mulher maravilha”, o esvaziamento era ainda mais cruel. Eram 24 pessoas na sessão das 14h, 24 na sessão das 17h e 38 na última sessão da sala, às 20h. No último dia, a sala do segundo andar teve 13,2% de sua ocupação preenchida nas duas exibições vespertinas e 20,9%, na derradeira. Camila, da bilheteria, afirma que essa era a realidade.
Os gatos pingados
O vendedor de churrasquinho, do outro lado da rua, na esquina da Batista de Oliveira com a Halfeld, estranhava a longa fila final. Eram uns “gatos pingados” que compravam dele refrigerante para acompanhar a pipoca do carrinho da frente, que carrega na lataria a inscrição Pipoca Mattos.
Não vai mudar de ponto a pipoqueira. O movimento deve cair, mas ela tem fé. “Vai voltar daqui a uns tempos, se Deus quiser!” A mesma tranquilidade tem Alexandre, o mais antigo funcionário do Palace, há 18 anos no local, desde sua reforma para a reabertura em 1999. Vai fazer o que agora? Descansar, ele responde.
Emprego não deve faltar, garante Alexandre, que faz de tudo um pouco. É pedreiro, pintor, marceneiro, serralheiro e, principalmente, um dos que mais entende de projeção de cinema na cidade. Os dois projetores de 35mm doados pelo Palace ao Cine-Theatro Central, já inutilizados nos últimos meses, devem precisar dele na nova casa.
Os filmes que vimos
A gerente da Fábrica de Doces Brasil não sabe precisar se e quando a lanchonete sairá do hall do prédio. Sabe que as portas continuam abertas. No lugar onde todos parecem saber mais do que podem falar, a única certeza é a de que a subutilização justifica, se não totalmente, ao menos parcialmente a situação atual. E não se trata apenas de público.
Ana mostra o segundo andar com as salas gerenciais e banheiros de funcionários, além dos espaços para ar-condicionado. Já Alexandre levanta a porta de metal na Batista de Oliveira e nos guia pelas estreitas escadas até o terceiro andar do prédio com suas fachadas e volumetria tombadas pelo município.
Enquanto no quarto andar só cabe a caixa d’água, no terceiro andar estão duas grandes salas, um banheiro, uma saleta para máquinas e um terraço onde ficam outros aparelhos de ar-condicionado. Numa das salas, amontoam-se cartazes antigos, feito lixo. Alexandre levanta alguns. “Laura, a voz de uma estrela”, de 1998; “Nove rainhas”, de 2000; “Scooby-Doo 2”, de 2003. “Coisa do tempo do onça”, diz.
Guardo comigo o pequeno cartaz de “Billy Elliot”, de 1999, que acompanhava o rolo para exibição. “Nº de partes: 12”, especifica o papel, referindo-se ao trabalho que Alexandre executou semanalmente durante anos. A alguns filmes ele assistia inteiros, outros, não. Na última sessão do último cinema de rua da cidade, ele não estava presente. Já tinha terminado o expediente.
A educação nossa
A professora de artes Chintia aguardava começar a sessão derradeira enquanto recordava-se do tempo em que trabalhou na mesma sala onde hoje se acumulam cartazes antigos. Integrante do núcleo de arte-educação do espaço, logo na reabertura do espaço, ela recorda-se de uma turma formada por cerca de dez professores, que faziam atividades com crianças de escolas locais após sessões específicas.
O primeiro filme do projeto foi “Kiriku e a feiticeira”, de 1998. Os pequenos estudantes saíam das sessões e discutiam e interpretavam a animação, no hall do cinema. A segunda produção, no ano seguinte, com uma equipe de arte-educação já enxuta, foi a versão da década de 1950 de “O Sítio do Picapau Amarelo”, em preto e branco.
Era visionário o projeto que oferecia bons salários aos seus profissionais, material de primeira qualidade aos atendidos e que chegou ao fim logo em seu segundo ano. “Não vingou.” Como não “vingou” o desejo de tornar útil o agigantado espaço sobre a sala do segundo andar. De acordo com Alexandre, já foi projeto fazer dali um conjunto de salas.
O poço de elevador denuncia o sonho de ocupação de um salão com dez janelas e dois basculantes e algumas centenas de metros quadrados, vazio em pleno Calçadão. Ana, a gerente, lamenta o lugar não servir como um grandioso complexo cultural, com três andares, muitas salas e atividades.
Antes da última sessão, Ana atende o telefone e informa: “O Cine Palace fechou. O Festival Varilux continua no Santa Cruz Shopping”. Do lado de fora, cartazes criticam: “Procuram-se cinemas de rua”. Enquanto o último filme é exibido no Palace, Ana retira os papéis das paredes. Acabam-se as referências ao cinema. Acho que é hora de dizer adeus.
Fonte: Tribuna de Minas